sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O Machão (Katzelmacher, 1967)

Realista, polêmico e esmerado

A obra de Fassbinder traz geralmente uma gama de críticas ácidas à sociedade, tendo preferência por certas temáticas de forma recorrente; Katzelmacher é interessante e destaca-se por conseguir condensar uma grande quantidade delas. Apesar de o assunto central parecer ser a xenofobia dos personagens alemães em relação ao trabalhador grego recém chegado à vizinhança, o filme mistura também assuntos como homossexualidade, prostituição, hipocrisia nas relações pessoais, dentre outros.

As linguagens visual e cinematográfica são bastante exploradas por Fassbinder de maneira que sejam passadas, através delas, suas intenções ideológicas e suas provocações emocionais. Em Katzelmacher, as composições visuais dos enquadramentos – clássicos, simétricos e equilibrados – unidas aos longos planos e, sobretudo, à câmera estática, remetem diretamente à monotonia da vida de seus personagens. A interrupção desses padrões visuais acontece sempre na intenção de dar vazão a uma idéia subseqüente do autor.
No caso dos enquadramentos, o equilíbrio constante é geralmente quebrado na intenção de enfatizar a ausência de algum elemento, seja ele material ou humano. Quanto aos longos e silenciosos planos, a câmera parada e a ausência de qualquer som que não seja o direto, são ciclicamente substituídos por planos seqüência – onde os personagens fazem uma espécie de panorama dos acontecimentos – que se assemelham a refrões, pois apesar de serem diferentes entre si, apresentam as mesmas características de construção e entrecortam todo o filme. Neles, está o único movimento de câmera de todo o filme – travellings para trás – combinado a uma trilha suave, assim como o caminhar dos personagens, compondo uma atmosfera quase lírica, bem dissonante de todo o resto do filme. Esses refrões são sempre interrompidos bruscamente, com cortes secos, pelo retorno à realidade e seu silêncio gritante, que aparece quase que como mais um personagem, tornando ainda mais clara a diferença entre esses dois momentos do filme.

A montagem lenta pode ser considerada expressiva, por possuir um efeito sociopsicológico forte. A monotonia denotada pelos planos e todos os outros elementos cinematográficos também não é gratuita. Fassbinder buscava, dentro de sua costumeira crítica à sociedade, retratar uma juventude apática, ociosa, fútil e sem perspectivas. Analisando sob uma ótica marxista, em que o trabalho aparece como condição de existência do homem, os ruídos e conflitos do roteiro surgem a partir da ociosidade em que os personagens se encontram.
Homens e mulheres, mergulhados em constantes críticas a seus semelhantes, ocupam-se em manter as aparências, sem perceber suas próprias condições de prostituição. A chegada do trabalhador grego, Jorgos, modifica essa rotina, primeiramente, por despertar um forte sentimento de xenofobia naquele microcosmo pós-nazismo de uma Alemanha há pouco humilhada, mas que ainda cultiva a idéia de um pátria soberana e exclusivista; depois, por atrair a atenção feminina e promover uma mudança de atitude – mais clara na personagem Marie - e mobilizando uma ofensiva masculina.
É um filme aparentemente lento, mas extremamente inquietante por sua temática e a maneira como esta é tratada por Fassbinder. Katzelmacher é realista, por explorar o tempo real de cada plano, polêmico por seus enfoques desconcertantes e esmerado pelas técnicas daquele considerado um dos principais diretores ‘malditos’ do cinema novo alemão.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O Mistério do Samba


Técnica e linguagem aplicadas para entreter e emocionar

Poucos são os documentários que entram em circuito comercial no Brasil, principalmente pelo pouco interesse que despertam no público em geral. No entanto, O Mistério do Samba – primeiro longa-metragem de Carolina Jabor e o segundo de Lula Buarque – se mostra um filme instigante do começo ao fim, seja por sua qualidade técnica, seja pela sensibilidade com que os diretores buscaram mostrar a poética misturada às canções, às histórias e aos rostos daqueles que compõem a Velha Guarda Portelense.

O projeto contou com o apoio de Marisa Monte, desde o roteiro até a condução de muitas entrevistas durante o filme. Na intenção de recolher canções raras desconhecidas, a cantora conversa com vários integrantes e protagoniza – às vezes apenas figura – belas cenas ao lado dos senhores e senhoras que compõem a o grupo veterano da Portela. A simplicidade e os sentimentos permeiam as conversas e as entrevistas de sobremaneira que o espectador logo se vê envolvido com tudo aquilo que vê, e emociona-se. Em uma seqüência marcante, seu Casemiro, leva na simplicidade de sua cuíca uma canção sobre um amor passado. Ao terminar, seus olhos fixam-se perdidos em algum lugar e logo são interrogados pelo diretor: “seu Casemiro, esse samba tem uma letra triste, né?”; ele responde dizendo “é... Se num tiver letra triste o samba não fica bom”.

O filme abusa dos planos próximos, como se as lentes buscassem no olhar e nas rugas dos personagens marcas que denunciem os tantos anos dedicados àquela música e àquela comunidade, uma verdadeira paixão. Com um grande interesse em explicar a origem do lirismo e poesia presente nas letras dos sambas, o documentário mergulha fundo nas histórias e sentimentos de uma gente simples, porém sábia, que apesar da profunda alegria que sentem em viver, busca nas angústias e tristezas intrínsecas, inspiração para construir as belas canções que inundam todo o filme.

Em meio às histórias de vida, dos casos e acasos daqueles senhores e senhoras, o dueto entre Paulinho da Viola e Marisa Monte é um deleite à parte no filme. A dupla interpreta, na informalidade de uma conversa na frente de casa, raridades praticamente perdidas de compositores de samba da Portela. As passagens, que aparecem no decorrer do filme, são de uma beleza tão singular, que nem os ruídos da captação de som direto foram capazes de ofuscar o brilho do momento.

Toca Seabra dirigiu a fotografia do filme de maneira a atribuir-lhe um ar um tanto informal, mas implacável com os detalhes e os muitos tons de azul. Deu um toque belíssimo, como uma homenagem, às lembranças dos momentos ou dos integrantes já falecidos. As fotos em preto-e-branco ou em sépia são destacadas do plano e sobrepostas a um fundo que remete às cores da Portela. Construindo uma estrutura barroca nas fotografias de família dos personagens, o diretor consegue envolver o espectador, com sutileza, nos sentimentos daquela gente.

Foram quase 10 anos de pesquisa e captação de imagens, o que fica claro nos planos que aparecem datados de 1998 a 2007. Em meio a tantas horas de material, não faltou sensibilidade a Natara Ney para condensar em 88 minutos conteúdo e a essência do grupo da Velha Guarda.

Em vários momentos, Carolina e Lula conseguem explorar diversos signos sem assustar com clichês: muitos planos próximos dos pés dos integrantes da Velha Guarda remetem ao lugar comum do ‘samba no pé’, assim como mostram, ao mesmo tempo, a vivacidade daqueles senhores e senhoras simples que construíram ao longo dos anos uma tradição tão forte e tão rica como a da Velha Guarda da Portela. Outro aspecto bastante explorado foi o de que o samba está presente em tudo naquela comunidade. Ele pode vir da palma das mãos calejadas do mecânico, do banco da estação Oswaldo Cruz ou do arranhar dos pentes de uma cabeleireira.

O Mistério do Samba foi um projeto de longa gestão que construiu, além do mérito do próprio produto final, uma homenagem a toda poética dos que fazem a Velha Guarda da Portela. O projeto de Marisa Monte de fazer uma coletânea de sambas adormecidos, felizmente se metamorfoseou em um belíssimo trabalho audiovisual, exemplo de como se pode aplicar boas técnicas e linguagem para entreter e emocionar um grande público desacostumado com documentários.

domingo, 10 de agosto de 2008

Partículas Elementares (Elementarteilchen, Alemanha, 2006)


Bem menos do que um drama existencial, bem mais do que uma comédia romântica


Partículas Elementares não é um filme de virtuosismos. Sem ousadia e com trilha sonora e fotografia simples e regulares, Oskar Roehler faz um drama linear e bem diferente das tendências do cinema alemão moderno, este que, influenciado pelo próprio cinema novo alemão, é famoso por temas políticos e experimentações de linguagem.
O filme homônimo da obra de Michel Houllebecq trata de forma humanística da história dos meio-irmãos Bruno (Moritz Bleibtreu) e Michael (Christian Ulmen) que, no auge de seus 30 anos, vivem conflitos pessoais e independentes. Eles encontram-se regularmente para falar de suas vidas, mas sem jamais envolverem-se nos problemas um do outro. O fato dos dramas dos irmãos não se misturarem durante a trama dá a idéia de que não só os personagens principais, mas de que todo indivíduo constitui uma partícula elementar. Quando Michael reencontra seu amor de infância Annabelle (Franka Potente) e Bruno conhece a sensual Christiane (Martina Gedeck), o sexo aparece como uma força capaz de unir essas partículas e, apesar das diametrais diferenças entre os irmãos, esta mesma força muda o curso de suas vidas. É nesse contexto que, sem pedantismo, misturam-se conceitos e aforismos acerca de temas relacionados à vida e à ciência.
Apesar da linearidade adotada pelo diretor, há certos exageros durante o filme, momentos em que o diretor busca criar uma dramaticidade plástica que não caberia ao romance de Houllebecq. Um deles acontece na seqüência em que Christiane aguarda um telefonema decisivo de Bruno. O abuso de planos próximos misturado a uma trilha sonora de suspense torna a seqüência excessivamente dramática e até desgastante ao espectador. Isso também acontece em uma cena em que Michael, ao caminhar pensativo, decide telefonar para Annabelle como se sentisse que algo esta errado com ela. O tom metafísico da relação dos dois beira o conto de fadas e, junto com os outros exageros melodramáticos de Roehler, comprometem a adaptação de um romance bem mais racional do que seu filme.
Mas Partículas Elementares possui vários méritos pontuais: Roehler acerta na seqüência em que Bruno descobre a gravidade da doença de Christiane. A trilha, os enquadramentos e o próprio desempenho dos atores – com destaque para o excelente Moritz Bleibtreu, ganhador do Urso de Prata de melhor ator em 2006 – se relacionam harmonicamente, compondo uma cena emocionante e de dramaticidade suave, coerente com o ritmo do filme. É de se elogiar a precisão de Roehler na escolha de seu elenco de atores e na maneira de dirigi-los.
Apesar dos deslizes óbvios, Partículas Elementares é um bom exemplo de um cinema alemão de linguagem acessível até ao mais aficionado consumidor de blockbusters, mas que pode, ao mesmo tempo, agradar aos cinéfilos que buscam uma tarde com pouca carga e informação cinematográfica. Oskar Roehler buscou compor um drama existencial, no entanto a crítica tem classificado seu filme como uma mera comédia romântica. Partículas Elementares é bem menos do que seu diretor imaginou, mas com certeza é bem mais do que a simples comédia romântica pintada pela crítica.

Um início

A idéia de criar este blog apareceu muito próxima a sua própria criação.
Eu nunca gostei muito de escrever textos e redação sempre foi um pesadelo para mim, desde a escola até o vestibular. Era penoso colocar minhas idéias no papel e depois lapidá-las de forma que obedecessem às normas cultas e à estética da língua portuguesa. No entanto, desde muito cedo, amigos, familiares e professores elogiavam meu estilo de escrever e minha facilidade em aplicar regras gramaticais, mesmo sendo inimiga dos livros de português. Talvez por facilidade com linguagens e idiomas, ou talvez por sempre ter lido bastante, desde muito jovem. A verdade é que desde que comecei a estudar cinema, descobri minha incrível paixão por analisar e discutir os propósitos explícitos e implícitos do filme, desde sua narrativa até sua linguagem técnica. Mas como compartilhar isso de forma que fosse além dos meus acompanhantes ao cinema? Não havia saída, a não ser começar a pensar seriamente em escrever.

Desde o começo de 2008 foram muitos textos, formatados para quem quisesse ler ou apenas para me orientar durante as infindáveis apresentações de seminários da faculdade. Chegam as férias de Julho e eu rumo de volta pra casa, em Maceió, sedenta por ócio. Ao me informar sobre as notícias da cidade, descubro um concurso de críticas fílmicas promovido pelo Centro Cultural do Sesi. Vontade de participar não foi bem o que senti. Acredito que me senti moralmente obrigada a participar daquele concurso, por ser frequentadora do lugar, por ter sido incentivada durante todo o meu primeiro semestre da faculdade a escrever e, acima de tudo, por ser uma estudante de cinema.

Partículas Elementares (Elementarteilchen, Alemanha, 2006) foi o filme escolhido. Assisti e gostei. Sai do cinema cheia de idéias e, lógico, discutindo os propósitos do título, do diretor, enfim. Mas havia um medo enorme de escrever, de falar bobagem, de criticar. Entre medos e preguiças, demorei 2 semanas para finalizar o texto e até hoje, não gosto muito dele. O resultado foi que conquistei o 2º lugar e fui contemplada com 6 meses de cinema grátis (os quais não poderei usufruir por estar a 2000km de distância do Centro Cultural Sesi AL).

Dois dias depois, resolvi me candidatar a uma vaga de estágio e, para minha surpresa, esse texto pontuou a meu favor. A cada dia que passa, me vejo mais mergulhada nessa idéia de escrever e este é o propósito do Blog: tornar a escrita parte da minha vida. Imagino que escrevendo regularmente, isso passe a ser algo mais natural e prazeroso para mim, tanto quanto discutir filmes em uma mesa de bar.

Não é um blog para cults, tampouco para consumidores de blockbusters. É um blog para pessoas que apreciam a linguagem cinematográfica e suas variações, dos filmes mais orgânicos aos mais plásticos e chicletudos.

Inicio essa jornada com o texto que serviu de ponta de lança para este projeto: Partículas Elementares - Bem menos do que um drama existencial, bem mais do que uma comédia romântica.